“O promotor mentiu.”
“Eles disseram que eu fiz algo que nunca aconteceu.”
“Estão contando uma história que não tem nada a ver com o que realmente ocorreu.”
Essas frases são ditas com frequência por réus e familiares quando o processo entra na fase de plenário do Tribunal do Júri. E embora a palavra “mentira” pareça forte demais em um ambiente formal, o que muitos chamam de “mentira” pode, sim, ser classificado tecnicamente como distorção narrativa da acusação — algo que, quando não enfrentado com estratégia e técnica, pode condenar uma pessoa inocente ou desvirtuar os fatos a ponto de parecer haver dolo onde só havia medo, omissão, acidente ou reação.
Este post explica, com profundidade, o que fazer quando o Ministério Público distorce os fatos em plenário, como funciona a construção da narrativa acusatória no Tribunal do Júri, quais são os limites legais da atuação do promotor, o que caracteriza manipulação indevida de provas ou testemunhos e como a defesa técnica especializada pode desmontar esse tipo de retórica acusatória antes que ela se torne condenação.
O QUE SIGNIFICA “DISTORCER OS FATOS” EM UM JULGAMENTO DE HOMICÍDIO?
No Tribunal do Júri, a atuação do promotor de justiça é marcada pela liberdade de expressão argumentativa. Ele pode usar metáforas, comparações, imagens fortes, palavras de impacto e narrativa moral. No entanto, essa liberdade não é absoluta. O promotor não pode inventar fatos, omitir provas deliberadamente, alterar o conteúdo de depoimentos, usar documentos fora de contexto ou acusar o réu de condutas que não estão descritas na denúncia.
Distorcer os fatos, no contexto jurídico, significa:
- Atribuir ao réu intenções que não estão provadas nos autos;
- Afirmar que houve premeditação sem base pericial ou testemunhal;
- Omitir provas favoráveis à defesa ao apresentar a tese acusatória;
- Utilizar frases soltas de testemunhas sem o contexto do depoimento completo;
- Usar a comoção emocional da vítima ou dos jurados para reforçar tese desproporcional;
- Apontar vínculos com terceiros sem prova ou menção formal na denúncia;
- Sustentar, em plenário, uma narrativa mais grave do que a descrita na acusação.
Essa prática é perigosa porque os jurados são leigos e podem ser convencidos por aspectos emocionais e retóricos, mesmo que não sustentados tecnicamente.
O QUE A DEFESA TÉCNICA PODE FAZER QUANDO O PROMOTOR DISTORCE A NARRATIVA?
A defesa precisa agir em duas frentes simultâneas: a jurídica e a narrativa.
Juridicamente, a defesa pode:
- Interpor protesto em plenário, conforme o artigo 497, inciso X, do Código de Processo Penal, para registrar o abuso da acusação;
- Requerer ao juiz que advirta o promotor, caso haja violação de decoro, invocação de fatos não constantes nos autos ou ataque pessoal ao réu;
- Gravar e registrar os trechos distorcidos para eventual nulidade ou apelação com base em discurso incompatível com a prova dos autos;
- Pedir a leitura da prova integral durante a fala da defesa, contrastando com o que foi omitido pela acusação;
- Apontar divergência entre os termos da denúncia e a acusação formulada em plenário, requerendo limitação dos quesitos ao conteúdo formal da acusação.
Narrativamente, a defesa deve:
- Reafirmar a verdade dos autos, reconstruindo a sequência cronológica com precisão;
- Mostrar as lacunas da acusação;
- Contrapor emoção com raciocínio lógico;
- Chamar a atenção dos jurados para a responsabilidade de decidir com base na prova — e não em indignação;
- Expor a manipulação com calma, mostrando como a distorção foi feita.
No Tribunal do Júri, ganha quem organiza melhor os fatos, não apenas quem grita mais alto. A defesa técnica precisa transformar o protesto contra a distorção em um argumento poderoso a favor da absolvição ou da desclassificação.
QUAIS SÃO OS LIMITES LEGAIS PARA A ATUAÇÃO DO PROMOTOR NO JÚRI?
O Ministério Público, por mais que seja parte acusadora, também tem dever de lealdade processual, boa-fé e compromisso com a verdade. O artigo 127 da Constituição Federal e o artigo 8º do Código de Ética do MP impõem ao promotor de justiça o dever de agir com imparcialidade, especialmente em sua condição de fiscal da lei.
No plenário do Tribunal do Júri, o promotor:
- Pode usar linguagem incisiva, analogias e expressões morais;
- Pode defender com veemência a tese acusatória constante na denúncia;
- Não pode acusar por fato não narrado na denúncia;
- Não pode criar provas inexistentes;
- Não pode omitir a existência de provas favoráveis ao réu;
- Não pode ofender a honra do acusado ou de seus familiares;
- Não pode manipular emocionalmente os jurados com dados que não estão nos autos.
O Supremo Tribunal Federal já reconheceu nulidades em julgamentos do Júri em que a acusação extrapolou os limites éticos, ferindo a paridade de armas. É essencial que a defesa registre em ata toda distorção relevante para possível apelação.
COMO A FAMÍLIA DO RÉU PODE IDENTIFICAR DISTORÇÕES E AJUDAR NA DEFESA?
Muitos familiares acompanham os julgamentos presencialmente e percebem distorções. Não são advogados, mas sabem que o que está sendo dito “não bate” com os fatos. Algumas orientações:
- Anotem frases exatas ditas pelo promotor;
- Identifiquem datas ou situações apresentadas de forma errada;
- Observem se o promotor está se referindo a supostos antecedentes, relações, condutas que não estão no processo;
- Informem o advogado da defesa técnica com urgência;
- Se a família contratou um novo defensor e o processo já teve distorções em fases anteriores, é possível pedir nulidade parcial.
A presença ativa e atenta da família pode proteger o réu contra injustiças narrativas e fortalecer a atuação da defesa no enfrentamento da tese acusatória distorcida.
PERGUNTAS FREQUENTES
O promotor pode mentir em plenário?
Não. Ele pode interpretar livremente os fatos, mas não pode inventar informações ou ocultar provas contrárias. Se fizer isso, a defesa pode pedir nulidade e recorrer.
O juiz pode impedir a fala do promotor?
Apenas em caso de abuso evidente: ofensa, imputação de crime não descrito na denúncia, ou uso de prova ilícita. O juiz atua como garantidor da ordem do plenário.
Se a acusação usou vídeos ou trechos de depoimentos fora de contexto, posso usar na defesa?
Sim. A defesa pode apresentar a íntegra do conteúdo, demonstrar o recorte seletivo e expor a manipulação perante os jurados.
É possível anular o júri por distorção da acusação?
Sim, desde que se comprove prejuízo concreto ao réu e que a distorção tenha sido registrada por protesto ou em ata.
A defesa pode gravar o julgamento?
Sim. Inclusive é recomendável para preservar prova oral, especialmente em plenário.
A VERDADE PROCESSUAL EXIGE ENFRENTAMENTO TÉCNICO DA NARRATIVA ACUSATÓRIA
No Tribunal do Júri, a acusação tem força simbólica, retórica e institucional. Mas isso não a autoriza a falsear fatos, ignorar provas ou apelar a versões distorcidas para buscar condenações. Quando o promotor ultrapassa os limites da denúncia e constrói uma narrativa dissociada dos autos, a defesa técnica precisa agir com firmeza, conhecimento e estratégia.
A verdade processual não se impõe sozinha. Ela precisa ser defendida. Cada distorção não combatida pode se tornar “verdade” aos olhos dos jurados. E cada omissão da defesa diante dessas manipulações pode custar décadas da vida de alguém.
Na Almeida Marques Advocacia, enfrentamos de forma técnica e rigorosa as distorções acusatórias, protegendo a integridade dos fatos, desmontando narrativas manipuladas e assegurando que nenhuma pessoa seja condenada por algo que não fez — ou por algo que foi distorcido a ponto de parecer imperdoável.
Se você ou seu familiar está sendo acusado de um crime doloso contra a vida e percebeu que o promotor distorceu os fatos no processo ou no plenário, ainda há como reagir. A justiça começa quando a defesa fala com precisão, com coragem — e com prova.